sexta-feira, 12 de novembro de 2010

“Afinal não estamos todos mortos de indiferença”
Tenho lido uma série de coisas bonitas. Poemas, sobretudo. Temos bons poetas. As linhas que se partem, os olhos que descem uma linha, a cabeça que cola as palavras todas para que façam sentido. Faz sentido.

Tenho ouvido uma série de coisas bonitas. Às vezes fecho os olhos e viro o pescoço, dou a nuca para ouvir melhor. E ouço. E mesmo que novo, estranho de ser nada estranho, mesmo que diferente, leve e simples, tenho ouvido. Faz sentido.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

o condicional nem é o meu preferido
arrebataria
arrebatarias
arrebataria
arrebataríamos
arrebataríeis
arrebatariam

terça-feira, 29 de junho de 2010

e a releitura dos apontamentos nos caderninhos antigos

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Rolinhos de beringela grelhada com chevre e morango
É do tipo straight forward science. Ou seja, é simples. Uma coisa com a outra dá uma terceira coisa gostosa. Ele há é sabores que não conheço.

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Recentrar as questões em tempo de deriva ideológica
professora mostra pipi e é suspensa, deputado furta gravadores e nada

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Andamos à procura de um prédio sossegado
Nunca te dei a mão. Nunca agarrei a tua mão. De dedos entrelaçados, nunca.

domingo, 23 de maio de 2010

Ocorreram erros, verifique os campos a vermelho
Acho que já não estão juntos. Acho que já não são namorados. Pelo menos não falam como tal. E não se tocam. Estão sentados em lados opostos da pequena mesa quadrada. Às sete da manhã de domingo discutem, sem discutir, amores. Ou melhor, sinais incompreendidos numa noite de copos. Diz que ele esteve toda a noite atrás dela e chegou a dar-lhe um beijo no pescoço. Mas não devia. Já não estão juntos. Ele não me parece muito convencido. Será sempre assim aos domingos ao amanhecer numa esplanada das avenidas? Dou-te um conselho, meu: “siga os seus instintos para conduzir a sua vida sentimental”. É da Maya. É o meu horóscopo diário e vem no Correio da Manhã, que é o primeiro jornal a chegar, às quatro da madrugada. Como isto é de fonte segura, que a Maya não se engana, dou-te de barato mesmo que não tenhas nascido no mesmo mês que eu. Foi, digamos, o primeiro pedaço de sabedoria com que me cruzei hoje. Aproveita. E falem mais baixo. Não precisamos ficar a saber o resto das vossas vidas. Bebam menos café. E durmam mais. Juntos, de preferência. É bom na mesma. Acordar ao lado de. Vá lá, falem mais baixo. O que é que é feito da Heloísa Miranda? Acho que se tivesse televisão tinha resposta para esta e muitas outras perguntas. Ou então vou ao Sapo. “Paulo Serra diz-lhe como vai ser o resto da sua semana”. Obrigado. Assim de repente já apontei na agenda o que interessa e o resto quero mesmo que seja surpresa. “Maya, uma das mais conceituadas astrólogas portuguesas, dá-lhe conselhos para o dia de hoje”. Ok, vamos a isso. “Ocorreram erros, verifique os campos a vermelho”. Hmmmm... “Paulo Cardoso fala-lhe de Amor — assim, com A — e das suas implicações durante o dia de hoje”. Porreiro. “Ocorreram erros, verifique os campos a vermelho”. Ah!, começa a fazer sentido. “Encontro: Mulheres de Corpo e Alma, 30 de Maio das 9h às 19h, Lisboa”. Anotado. “Curso de Kabala, 22 e 29 de Maio, Sábados, das 14h30 às 19h”. Vou sugerir ao Sócrates ou ao Ricardo Rodrigues quando os vir lá no parlamento, pode dar-lhes jeito. “Introdução aos trânsitos: conheça o significado de trânsito planetário”. A esta hora está certamente calmo. “Vídeo: Alexandra Solnado: espiritualidade na primeira pessoa”. Medo! “Família: avalie o seu instinto parental, faça o teste”. Quero ter três, mas vamos lá fazer o teste. “Ocorreram erros, verifique os campos a vermelho”. Exacto... Isto dois mais dois são sempre quatro, não há volta a dar. “1001 cartas de Amor: palavras sábias para situações difíceis”. Hmmmm, é muito cedo. “Sugestões: Livro dos Pêndulos”. Está em saldo: doze noventa em vez de catorze euros e meio. Quero um quarto Vigor chocolatado, se faz favor.

sábado, 8 de maio de 2010

Porque é que no início dos filmes brasileiros aparece aquele cartão de apoio da Petrobras e nos portugueses não vejo a Galp, a EDP ou o BES?

o cineasta – preciso de apoio para fazer um filme.
o senhor da GALP – então e qual é a história, o argumento?
o cineasta – basicamente ao fim de uma hora e quarenta minutos dois irmãos fazem sexo.
o senhor da GALP – hmmmm
o cineasta – mas assim com grande carga dramática, tudo muito intenso.
o senhor da GALP – imagino…
o cineasta – nada explícito, nada gratuito, erótico mas estranho, não é? afinal são dois irmãos, um miúdo e uma miúda, adolescentes, a fazerem sexo. ou amor, não é? isto depois cada um lê como quiser. carnal. dor e prazer. dor física e psicológica, de ambos. mais dela do que dele, mas pronto.
o senhor da GALP – uhumm… então e que mais? quem são os actores?
o cineasta – são todos bons, com experiência de teatro, televisão e cinema. uns consagrados, outros mais novos. mas todos com provas dadas, isso é garantido. pelo lado dos actores é garantido.
o senhor da GALP – certo…
o cineasta – depois vai ser tudo muito bonito. para já porque é película, não é? cinema é película. eu faço película, não é? depois também vai ser tudo muito bem filmado. óptima fotografia quer nos ambientes escuros, quer nos exteriores. mas o ambiente vai ser mais para o sombrio, não é? os decors são muito bons também. detalhe e cuidado nas cenas dentro de casa, casas velhas, com alcatifas, paredes de tons escuros, a tinta a pelar, um prédio com elevador daqueles antigos, abertos, mas que não funciona, as portas de correr em metal estão fechadas a corrente e cadeado, as escadas são em madeira. e mesmo nos quartos, não é?, as molduras com fotografias, as colchas das camas que podem cheirar a mofo. nisso tudo há um grande cuidado. e depois é a realização, não é? tudo bem realizado porque vai ficar logo impecável na filmagem, tudo muito bem filmado. há planos muito bonitos ao pé do mar, assim picados, o contraste da espuma branca das ondas que se desfazem na rocha escura. ou os outros, fechados, apertados na cara dos actores para captar as expressões, tudo muito expressivo. e sequências longas sem falas, não é? sem diálogos nem monólogos. só a expressividade e a carga dramática dos gestos, dos movimentos, que é para o espectador entrar no filme, fazer parte, quase como que estar ali dentro com os actores, não é? envolver o espectador na densidade do enredo, no fundo é isso.
o senhor da GALP – hmmm…
o cineasta – e o título vai ser bom. já escolhemos e tudo… vai ser uma frase, vai remeter para uma dúvida, vai deixar o espectador em suspense. vai ser: como desenhar um círculo perfeito. o que é que acha?
o senhor da GALP – bom eu não…
o cineasta – também já escrevemos a última cena. a última cena vai ser muito bonita. visualmente, não é? parece uma fotografia. vai resultar mesmo. e muito cuidado com o som. a captação de som será irrepreensível porque as pessoas queixam-se sempre que o som nos filmes portugueses é mau, mas isso é porque estão habituados a ler as legendas dos filmes em inglês e não notam que enquanto estão a ler não estão a ligar ao que está a ser dito e depois acham que o som, o nosso som, é que é mau. experimentem ver um filme inglês sem legendas e percebem logo que está tudo… mas pronto, muito cuidado no som. e a banda sonora vai ser boa. nós temos músicos que são especialistas em bandas sonoras, piano e outros, e portanto isso vai ser bom, não é? quer dizer, doutra forma também não vale a pena fazer…
o senhor da GALP – pois…
o cineasta – e portanto isto está garantido, não é? estas coisas estão todas… vai ser visivelmente bonito, vai ser intenso, vai ter conteúdo, não vai ser um filme vazio. e depois vai estrear num festival — isto além dos festivais no estrangeiro, porque o filme vai competir para passar nos festivais europeus, norte-americanos e no Brasil… portanto estreia num festival e depois vai durante duas semanas ou assim para duas ou três salas em Lisboa. porque eu gosto deste caminho, os filmes, o cinema, têm que fazer este caminho, não é? pelo menos eu gosto. o filme, aliás, é aquilo que eu gosto, aquilo de que eu gosto, não é? este filme é aquilo de que eu gosto… o outro também era, não é? mas este é mesmo aquilo… de que eu gosto.
o senhor da GALP – uhumm…




o cineasta – e portanto para fazer isto assim isto tem custos, não é? tem custos… não é muito, mas tem os seus custos…



o senhor da GALP – e você estava a pensar em quanto?
o cineasta – 100 mil, 200 mil, também é conforme o que vocês estiverem a pensar investir numa coisa destas, não é? mas era assim nessa ordem.



o senhor da GALP – pois, estou a ver.
o cineasta – e vocês depois têm o retorno, não é? uma coisa destas dá retorno. além dos incentivos, não é? o retorno e os incentivos, isto para vocês tem esta dupla…
o senhor da GALP – claro, claro…
o cineasta – dimensão, esta dupla dimensão…



o cineasta – deixo o projecto consigo? aqui está tudo mais detalhado, não é? deixo-lhe isto…
o senhor da GALP – olhe, não vale a pena.
o cineasta – não?
o senhor da GALP – não. quer dizer, com estas condições não, não é? o produto é bom, sem dúvida, tem potencial, mas com estas condições, esta estratégia, não vai ser possível. não apoiamos.
o cineasta – não?
o senhor da GALP – não.



o cineasta – mas porquê?




Ou é mais ou menos isto ou o António Mexia é um lambão e quer o dinheirinho todo para ele. Ou só não gosta de ir ao cinema, pronto.

sexta-feira, 30 de abril de 2010

Tinha sido tão simples

domingo, 25 de abril de 2010

Em gostando, di-lo-ias?
É que a mãe da Cláudia diz que sim. Diz também que é minha fã. Mães... Lá terei de ir à Guarda um dia. Baixar a guarda, render da guarda. Hoje não vou assistir. A única guarda que vou ver é a da banda. E vai ser bonito e vou encher o peito e vou sorrir e vou sentir-me bem. E cansado. É que estou cansado sem saber porque estou cansado. Já to disse. A minha cartucheira está vazia. E isto só ia lá com armas. Onde é que assino o termo de rendição?

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Foda-se. Ainda mexe.
Isto. Bum.
Como é que eu acabo com isto antes que isto acabe comigo?
Como é que se acaba com isto?
Isto tem mesmo de acabar
Ele há dias em que não consigo mesmo dizer seja o que for

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Enquanto como um pastel de nata que me deram
(e que gostoso que ele é)
e tento fintar o sono mais uns minutos
(hoje sou eu que não quero dormir, hein?, não quero, não quero fechar isto)
e acendo o último cigarro, com cuidado para não deixar o teu lenço a cheirar a fumo, que prefiro que cheire a ti, que prefiro que te chegue como mo emprestaste, como estava quando o enrolaste à volta do meu pescoço,
(estou a fungar. quer dizer que isto falhou? de manhã vamos saber. smile com aquela cara apreensiva)
e que quentinho que ele é,
enquanto faço isto tudo não posso deixar de ler e reler, pensar e repensar, lembrar e relembrar, duvidar e duvidar,

um arrepio. é de cansaço. não é de constipado. é de cansaço, que hoje corri na praia, corri para casa, corri para a cidade, caminhei que me fartei, estive em pé que me cansei. é de cansaço. um arrepio ou um estremeção?

enquanto como o segundo pastel de nata que me deram
(são quatro e podem estragar-se)
chego apenas a uma meia conclusão. e vou precisar da tua ajuda.

isto faz algum sentido?

terça-feira, 6 de abril de 2010

Diz que estou no fundo da caixa às flores pirosas que a Margarida tem lá em casa
Foi a primeira vez que senti aquelas coisas. Aquelas coisas esquisitas de novas. Tremores. Sorrisos. Suores. Vontades. De fazer coisas, dar coisas, mostrar coisas, partilhar coisas, ver coisas, estar presente em coisas, querer que estivesses em coisas, sei lá, o normal nestas coisas. Tu na minha cabeça à noite, tu na minha cabeça de manhã, à hora de almoço e antes de jantar, nas aulas, no intervalo, no caminho de casa e a caminho de tua casa, nas mixtapes e nas cartas — isto já foi há quanto tempo? Dizem que são esses os sintomas. Pelo menos foi assim que me explicaram. O Rui é que sabe. O Rui deixou de ter pressa quando lhe roubaram o relógio. O relógio e o Dom Quixote encadernação de capa dura, azul escura, na lombada as letras douradas, meia francesa. Ladrões de corações com as unhas pintadas de vermelho e saias curtas. Já leste o poema que te escreveu? A estória repete-se de cada vez que apareces. A minha parece que também. Esta primavera que não chega. E eu sonhando ou com aviões cheios de gente a cair até amarar no Sena, Paris, claro, ou com beijos, aos beijos. Aos beijos!, imagina. Aos beijos, aos olhares, às mãos a viajar, às coisas ditas ao ouvido no calor, aos sorrisos envergonhados... É que tenho dormido pouco e muito tarde. Farto-me de despejar cinzeiros cá em casa. Castanho, verde, azul, rosa, laranja e castanho outra vez — os da outra metade já os comemos. Isto serei só eu a ver? Um dia compro um megafone e aí é que ninguém prega olho! Aos quatro ventos, às quatro esquinas, às quatro colinas, internem-me se quiserem!, apanhem-me se conseguirem!, se me esconder num dos sete quartos da casa do Rui ninguém me encontra, vão todos tropeçar nas guitas que vou estender atadas aos rodapés das portas, podem continuar a tentar, sairei só à noite, de fininho, que todos os gatos são pardos menos a Alice, um bolo de chocolate debaixo do braço e uma garrafa de vinho na mão, passo no Luís e no Carlos só para comprar tabaco e dar as boas noites ao senhor Simões, não não, deixe estar, não preciso de boleia, ó homem mas eu levo-o lá e não precisa pagar!, deixe estar senhor Simões que isto é uma hora de caminho e é quase sempre a descer, ora quase homem, pois ora que quase senhor Simões, mas obrigado na mesma, então e vale a pena?, (sério) ó senhor Simões: perguntas com rasteira é que não, e lá irei, avenida abaixo, avenida acima, avenida abaixo, avenida acim... afinal fiz mal as contas: é a descer se for daqui de casa. Ó senhor Simõõõões! Agora é tarde. É tarde? Então o bolo de chocolate debaixo do braço e a garrafa de vinho na mão... Vou mesmo ter de beber sozinho?

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Como é que se diz?

segunda-feira, 8 de março de 2010

As coisas que se dizem no escuro
E as outras que se fazem e não se conseguem esconder. Também, pouco importa. Nem tudo deve ter a solenidade do momento em que se ouve Dinah Washington, Etta James ou Ella Fitzgerald, e já estou a deixar de fora outras grandes pretas, pretas com vozes enormes. Para se ter uma voz daquelas tem de se ser preta e isto deve estar escrito algures nos desígnios do universo, ponto. Porque há coisas que estão e outras que não. E quanto a isso, batatas. Mesmo que chateie o mesmo ou mais do que apanhar com uma batata na cabeça, assim como que caída da macieira do Newton ao fim da tarde de um domingo em que fôramos ler para o parque. Acontece que os galos passam com gelo e nem é garantido que os miminhos, como aqueles que logo damos às crianças “fez doi-doi, cá beijinho”, acelerem seja o que for na cura do hematoma — gelo para a epiderme, derme e endoderme, e para a cabeça fria. Porque, graças a alguma coisa, a cabeça pode arrefecer-se. O resto... É seguir sorrindo. Que foi o que fizemos todos.





quinta-feira, 4 de março de 2010

Descolou agora
o primeiro avião na Portela, hoje.

domingo, 29 de novembro de 2009

As canecas da Tupperware
A Rita diz que não poderei perceber por que razão a Sigourney Weaver era considerada um sex symbol nos anos oitenta porque eu era um “bebezolas” quando o James Cameron realizou o Aliens. A Rita tinha onze anos e nunca tinha beijado um rapaz porque era tudo muito andrógino, pá, as roupas, os cabelos, era uma coisa. Aparentemente é isto que explica o fenómeno da Sigourney Weaver. Isto e o facto de no final do Alien do Ridley Scott ver-se o rabo dela, estavam na moda aquelas cuecas descidas e de tamanho pequeno, nada de soutiens, uma excitação, se se tiver em conta que o Homem só tinha pisado a Lua havia dez anos — não vamos discutir. Porque, já agora, importa esclarecer que, ao contrário do que a RTP me fez crer todo este tempo, o Hicks, o Bishop, as armas super evoluídas, os tiroteios e os magotes de bichos de duas bocas de mil novecentos e oitenta e seis são já o segundo episódio da saga que nasceu sete anos antes, época de ouro dos monitores monocromáticos, onde a Ripley, lá está, aparece com aquelas cuecas mínimas que a produção substituirá pelo conjuntinho de roupa interior desportiva de algodão cinzento e nada sensual que ela tem vestido no início do segundo filme da série que eu julguei o primeiro episódio, ainda sem soutien, a bem do racord, a fraude a fraude. Ou falta de atenção. Devia ter suspeitado do ‘s’ no Aliens e do ‘3’ no Alien elevado ao cubo, que já é do David Fincher, em mil novecentos e noventa e dois, era eu um rapaz crescidote e já a Rita era uma adolescente muito vivida. O Alien Resurrection, do Jean-Pierre Jeunet, já é um bocado espremido, coisas da proximidade do milénio.


Seja como for, o que é feito das canecas da Tupperware? Foi o plástico poroso e capaz de largar partículas com o tempo, com o raspar das colheres ou das dentadas da miudagem, que as fez desaparecer? Lembro-me bem. Lá em casa havia umas quantas, enfiavam-se umas dentro das outras, eram de várias cores, pelo menos uma vermelha e uma beije a fugir para o branco. Havia anos que não punha a vista em cima de uma coisa daquelas. Também havia anos que não apanhava uma constipação de me atirar dois dias para a cama, xiça. É ver o Alien. O de mil novecentos e setenta e nove.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Porque é que deixaste de escrever sobre o amor?
eu says: Mas eu alguma vez escrevi sobre o amor?

ela que pensa que eu escrevo says: Escreveste.

eu says: Quando?

ela que pensa que eu escrevo says: Não sei, mas escreveste porque eu li.

eu says: E lembras-te dessa história?

ela que pensa que eu escrevo says: Sei que falava de mãos bonitas e unhas vermelhas. E era inverno. Nessa altura não escrevias sobre bifanas.

eu says: Ahahah, ok, eu prometo fazer umas linhas sobre o Tetro.

ela que pensa que eu escrevo says: Mas o Tetro não fala de amor!

eu says: Não?

ela que pensa que eu escrevo says: Não.

eu says: Então eu prometo andar mais atento. Agora vê-se muita gente a partilhar dúzias de castanhas na rua, os cartuchos das páginas amarelas, o fumo dos assadores a fingir que é nevoeiro, os casacos fortes e os cachecóis à volta do pescoço, algumas mulheres ficam bem giras de boina, deve dar para umas linhas...

ela que pensa que eu escrevo says: João...

eu says: O que é?

ela que pensa que eu escrevo says: Dúzias de castanhas, João?

eu says: Ahahahah

domingo, 22 de novembro de 2009

Are you predator or do you fear me
Decerto que fazia frio em Janeiro de 1991 quando os F-15 levantaram voo. O ataque massivo. Eu lembro-me de me estarem a vestir para a escola, de manhã, ainda estava escuro, e lembro-me das imagens verdes do deserto e dos mísseis disparados dos navios. O resultado foi uma série dos discos mais bem inspirados da minha estante. Com o devido atraso, com a devida dedicação, até comprar, hoje, o último bilhete para a plateia — verídico.


Há seis anos que não temos um novo disco de Massive Attack. Os rapazes não acertam com a fórmula e dizem que já deitaram fora dois conjuntos de gravações. Não conseguem reinventar-se? Não há como sobreviver à cena trip-hop da Bristol dos anos 90? 100th Window já foi espremido à força? O que se ouviu de novo esta noite no Campo Pequeno não foi explosivo, houve narizes franzidos, e não são muitos os elogios a Splitting The Atom, o EP que anda para aí.


Os sorrisos rasgados, os gritos bem alto, as mãos no ar e muitos assobios, esses só se ouviram com os clássicos, revisitados pelo caminho mais próximo do que está na memória — Angel com Horace Andy em palco — ou vestidos de novo — Teardrop com Martina Topley Bird. Isto porque Karmacoma, que continua sendo simplesmente a melhor forma de terminar um concerto, e Inertia Creeps, que continua a incendiar, não entram nesta contabilidade. E Unfinished Sympathy não se repete.


A política continua presente. No fundo do palco lêem-se mensagens contraditórias sobre os gastos do parlamento britânico e o custo de medicamentos ou refeições no Quénia e na Somália, que valem o que valem a despertar mentes. Um grande ecrã de leds brancos, vermelhos, verdes, letras e números gigantes, Simão quer acabar a carreira no Benfica, Cantona teria batido no Henry, pequenas faixas de código binário, citações de Mandela, Bakunin, Malcom X, Milton, Toqueville, Aristóteles, coiso. O espectáculo visual é muito bom.


Del Naja sabe de onde vem e tem uma ideia de para onde quer ir, Daddy G parece um acessório. A electrónica fica-lhes muito bem, a guitarra distorcida muito também, a banda, caramba.


O Filipe, há uns anos, numa aventura que teve o nome palerma de www.xiribizi.net, escreveu num artigo que aquilo soava como o álbum do Tricky: tensão pré-milénio. Agora soa a tensão pós-milénio? É que parece. Filipe?


sábado, 21 de novembro de 2009

Cada vez mais duvido de cozinhas abertas e dos discos do Marvin Gaye quando está a chover
O Royale não tem pinta nenhuma. A música está sempre muito alta, os copos, os pratos e os talheres batem demasiado, não há esse aprumo no serviço. Ter um café metido xique, ou metido fixe, no Largo Bordalo Pinheiro, devia obrigar a provas de aptidão ou de elementar bom gosto. Podem dizer-me, mas tem aquela esplanada interior, um estrado em madeira, as mesas e cadeiras de jardim, as plantas, os fetos e outras coisas verdes que cobrem a parede, e o toldo extensível que protege quando chove, e as saladas que são boas. Não é suficiente. Charme e requinte não é ali.

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Uma rapidinha na Almirante Reis
Em bom rigor foi na Pascoal de Melo, onde as árvores frondosas criam mais sombras e o trânsito sempre é menos caótico que na avenida. E porque há coisas que requerem algum recato. Como, por exemplo, comer um prego às onze da noite. A última coisa que se quer de acompanhamento, no entanto, é um madeirense a aculturar um brasileiro: às seis da manhã já ele estava a mueter um copo de teinto e uma buifana, só pra vueres o andamuento do homem, antes de abrir o cafué, tás a vuer? É, tem pêssuao qui trabalha cedo, né? É o meu caso, amanhã. Mas estou dividido entre isto, uma biografia de um político e umas belas remisturas de música popular portuguesa.


Isto à medida que um homem envelhece, ou antes, cresce, sente necessidade de corrigir algumas afirmações. Ora, havendo poucos sítios nesta cidade onde se coma ao balcão por um preço aceitável quando a noite já vai longa, ou admitindo que sou eu que conheço poucos, até à meia noite, às vezes uma da manhã, a Portugália desenrasca com um prego que, é preciso fazer justiça, não vem mergulhado no molho de manteiga e é bem gostoso. Quanto à bifana, mantenho o que disse, mas o prego com tudo é capaz de salvar vidas. Com tudo é com cebola, queijo, fiambre e um ovo estrelado bem passado. Geralmente é da vazia, mas pode pedir-se do lombo e pagar a diferença, e só não pode é fugir-se à fritura — prego grelhado? sim. aqui não! não? não! pronto, homem, ‘ta bem.

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Sachertorte, ou Lisboa tem tardes de parecer uma verdadeira capital europeia
É o famoso bolo de chocolate austríaco que se come no café austríaco do Chiado por uns não menos austríacos quatro euros, quatro. Muda-se da Rua Anchieta para outro bairro e pelo mesmo preço saboreia-se duas fatias. Quer dizer, em bom rigor são dois pedaços, porque as fatias de Campo de Ourique não resistem à primeira garfada e logo se desmoronam em chocolate derretido e abundante de raspar o prato com o garfo, doce doce. Mas no austríaco não poderia ser assim. A única coisa que se desfaz é o charme do sítio: a climatização é mais fria do que na rua, o que deve ser razão bastante para a simpatia oscilar entre o gélido de uma das moças e o morno de outra, e são umas quatro, hoje domingo. A comida, sim, tem óptimo aspecto, wiener schnitzel, altwiener saftgulasch, um brunch digno do nome, as várias tostas e de tudo um pouco, o chef estudou cozinha, e as sobremesas têm mão de mulher, tudo bem por aí. E o bolo de chocolate, o sachertorte, não se desfaz porque veio do frio — uma frase de duplo sentido, escuso explicar. Duas camadas de bolo meio fofo entremeadas com chocolate fundido, cobertas com uma geleia que nos intrigou, escondida sob uma capa dura e fina de chocolate negro, a fatia servida com natas frescas, ao lado, sem açúcar. Banal. E muito caro. Dir-me-ão: não era esse, mas sim o outro, o bolo de chocolate de trufa. Humpf.


Não há nada que me chateie muito no Kaffeehaus a não ser a falta de mais Kaffeehaus pela cidade. Nas avenidas! Nos outros bairros! Cafés desenhados com bom gosto, planeados, sóbrios e contemporâneos, com os jornais do dia e as revistas do mês passado, nas paredes cartazes de teatros e exposições uns por cima dos outros, sofás em pele comprovadamente confortáveis, tectos altos e janelas grandes, abaixo os azulejos!, os alumínios!, os grandes balcões envidraçados!, mostruários de má pastelaria e muitos fritos, os negócios do pai, da mãe, do cunhado e da nora que vieram de Ponte de Lima — excepção à família do senhor Carlos Sá, ali à Calçada do Poço dos Mouros, pessoa de bem, ainda que lampião —, cafés onde se vai para ler, para conversar, para ver chover lá fora, para comer diferente uma vez por outra, uma especialidade, uma suposta regionalidade, com aprumo na apresentação, com critério na variedade, com gosto por ter um espaço diferente, e agora que até há imprensa de lazeres e consumos dedicada ao que é citadino e atenta ao que tem pinta, um café onde se vai para escrever no caderninho, para seduzir, porque não?, ou simplesmente porque é o primeiro domingo verdadeiramente cinzento daqueles de anoitecer às cinco da tarde e apetece não se afastar demasiado de casa, ameaça chuva, as visitas pendentes que tenham paciência, cheira a castanhas assadas e é tão bom andar a pé. Se não for pedir muito, realistas no preçário. Há vários joões no sítio onde trabalho e o meu recibo de vencimento não é esse, é o outro, ora vira lá. Pois.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

E o direito à liberdade, onde fica?
Não tenho especial simpatia pelos “Homens da Luta” mas a segunda detenção que lhes vejo em dois meses, sempre em contexto político, não deixa de me incomodar. Primeiro numa acção de campanha do PS para as legislativas, no Seixal, hoje na tomada de posse do Governo, no Palácio da Ajuda. Na altura não me recordo dos argumentos da PSP, mas hoje a polícia negou que tenha detido os dois humoristas: diz que os levou para a esquadra a fim de os identificar, porque no local não havia condições para tal, depois de terem passado trinta minutos a fazer isto, a uns bons cem metros do palácio, com o fundamento de que estavam a pertubar a cerimónia de um órgão de soberania. E até isto teve de ser a comissária a explicar à Lusa, porque os agentes no terreno não souberam fundamentar o acto de agarrar nos fulanos e os enfiar numa carrinha — nas mãos os bilhetes de identidade.



É realmente o único argumento possível, até tem um crime a condizer na lei, a “perturbação do funcionamento de um órgão constitucional”, a Presidência da República, e ainda se lhe poderia juntar outro, a “desobediência de ordem de dispersão de reunião pública”, com uma pitada de perturbação da ordem pública. Mas nada disto me satisfaz.

O Neto e o Falâncio chegaram ao palácio e foram mantidos à distância por um cordão policial que nunca desrespeitaram nem tentaram ultrapassar. O povo, querendo, podia chegar mais perto. Não perturbaram nenhuma ordem pública, porque tudo correu da forma mais ordeira. Não insultaram, injuriaram ou ofenderam ninguém. Não percebo como terão perturbado a cerimónia oficial — no vídeo da SIC ouve-se a cantoria dentro da sala com aquela clareza porque o microfone do repórter do exterior já está no ar — porque, se se ouvia alguma coisa no salão do palácio, que se fechasse as janelas, que estavam abertas — diz que a sala é pequena e faz muito calor... Não percebo como é que dois tipos a cantar e com um cartaz em punho é uma reunião pública, e por isso não percebo que tenham desobedecido à ordem de dispersão, como também não percebo por que raio terão de dispersar se até já estão a cumprir a distância a que a polícia lhes pediu que guardassem. Não percebo.

Onde é que está o direito à liberdade de expressão? Assim não.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Já chove
Sei que o Outono chegou quando o edredon volta à cama. É que hoje acordei todo enrolado no lençol e não me lembro de ter tido algum pesadelo ou ter sonhado com saudades. Frio, portanto. Quando era miúdo dormia agarrado a um guardanapo de pano a que chamava, dizem-me, o “minapo”. Aliás, não só dormia com ele como o levava comigo para todo o lado. Coisas de crianças. Hoje ando mais com qualquer coisa para ler, uma revista, um jornal, um livro de bolso, de que puxo no metro ­— e está a chegar a altura de andar mais de metro, porque com a chuva arrumo a bicicleta — ou num café, e só não leio no bar porque nem sempre apanho o cadeirão à entrada ao lado do candeeiro de pé alto. No outro onde tenho passado mais tempo por estes dias não se consegue, não tem luz suficiente.

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Aquele beijo na testa
Diz que o italiano se encontra “bastante desiludido e agastado com o nosso país” e por isso decidiu abandonar Lisboa. Eu digo que foi a cena dos beijos na testa que não pegou.

Da única vez que fui ao Luca o Luca Manissero, o gerente, um tipo assim alto e careca, bem-parecido, agarrou-me na cabeça com as duas mãos, disse “ma que cosa!” e pregou-me um chocho na testa. Achou que eu estava com cara de poucos amigos por estar esperando há mais de quarenta minutos pela mesa reservada de tarde, chateado apesar de ter três mulheres bonitas comigo. É que eu não gosto de esperar.

“O conhecido restaurante italiano Luca surpreendeu tudo e todos ao fechar as portas na semana passada, dia 22.”

domingo, 27 de setembro de 2009

2346 – 4453 quilómetros e assim de repente já acabou – dias, 9, 10, 11, 12, 13 e 14
Esqueci-me de dizer que a carqueja, do arroz do Cortiço, em Viseu, é uma planta? De flores amarelas, muito comum no norte do país, e não um galeirão, que é um passarito? Esqueci-me. Às vezes acontece. Como aconteceu que o bife à Vianna, do café Vianna, em Braga, desde 1876 a servir bifes duros como sola, foi uma desilusão de todo o tamanho – em cinco escapou um? É muito para ser azar, e aconteceu. Como aconteceu não ter conseguido fazer o que queria, escrever notas diárias da campanha eleitoral para as eleições legislativas. Aconteceu que o ritmo da campanha não deixou espaço para mais, que foi como saí do Silvas, ainda na Bracara Augusta: sem espaço para mais fosse o que fosse das iguarias que o tipo tinha para oferecer. Funciona assim: sentamo-nos numa cadeira ao balcão em forma de ‘u’ e rendemo-nos à variedade de pratos que o senhor do outro lado nos apresenta e até nos dá a provar, deixando um pratinho de bacalhau com natas, mas com poucas, para nos entreter enquanto esperamos pelas trouxas de peru com puré e couves de Bruxelas, ou pelas almôndegas, ou pelo bacalhau assado em tomate e cebola, ou pelas lulas recheadas, ou pela vitela estufada, ou pelos filetes de pescada. Ao fim de dois pratos já só nos rimos e a tragédia, bracarense, chega com as sobremesas, todas dispostas no balcão, dispensando apresentações. Confia em mim?, pergunta sorrindo, sabedor da consolação que já sentimos e daquela que ainda vamos conhecer. Estou nas suas mãos. Pudim de chocolate com baba de camelo, tarte de framboesa e pudim Abade de Priscos, tudo caseirinho. O Silvas original mora na Avenida da Liberdade, no centro comercial Granjinhos, e o irmão maior fica ali à Avenida Central, próximo do McDonalds – coisas do destino. Como a fotografia de mim, da Rita e do Sílvio, o chef, todos abraçados, retrato que já deve estar na wall of fame d’O Pote, onde tudo é de leitão. Quis o destino que ali fossemos parar e que a nossa fotografia fosse toda olheiras e demasiado brilho na pele, para não lhe chamar sebo, mas enfim, dias muito longos. O homem trata muito bem jornalistas e faz questão da fotografia, porque a melhor publicidade é a que passa de boca em boca. Era muito tarde, fez-nos uma mesa, pagámos uma pechincha por entradas intermináveis, leitão que não acabava, sobremesas variadas, vinho verde e cafés, muitos. Fica na estrada do Louriçal a caminho de Pombal, saindo da A1. Quando virem a placa grande e azul a apontar para o ‘manjar dos leitões’, ou lá o que é, podem parar e virar a cabeça para a esquerda – não vale ir mais longe. A não ser que se seja do Bloco de Esquerda. É que eles querem mudar o mundo, como cantaram nas arruadas do Chiado e da Cedofeita.

Andei por Marinhais, Riachos, Santarém, Coimbra; Lousã, Coimbra x3; Esposende, Braga, Guimarães, Braga; Barreiro, Lisboa (Chiado), Barreiro; Cacia, Aveiro, Santa Maria da Feira; Porto (Serralves), Porto (Cedofeita), Braga, Porto (Coliseu).

Campanha – um piqueno e médio balanço

A campanha do Bloco decorreu sem sobressaltos e conforme o pretendido. Na primeira semana o discurso incidiu no programa do partido – “leiam-no e percebam por que é que Sócrates não gosta dele”, dizia Louçã nos comícios – para depois se dedicar aos eleitores indecisos – “somos a esperança” – e finalmente acabar com o apelo ao “voto com utilidade para derrubar a maioria absoluta socialista”, dramático, “ou a esquerda ou a maioria, ou o Bloco ou a maioria”.

Nestes catorze dias houve momentos difíceis e outros maus, como as repetidas explicações a que Louçã foi obrigado, em comícios e na rua, sobre a proposta do fim dos benefícios fiscais nos PPR – teve até um encontro crispado com um sujeito numa arruada na Moita. Ou a recusa em falar com as peixeiras em Alcobaça, que caiu mal nas televisões e que soube que nem ginjas ao Paulo Portas. Ou uma arruada na Moita que não durou mais de cinco ou dez minutos porque não andava ninguém pela praça central ao final da tarde, e que obrigou a regressar, dias depois, numa noite de feira e festa da cidade, sem hipótese de falhar o banho de gente. Ou a incursão pelo Alentejo, por Serpa, Rio de Moinhos e Almodôvar, com iniciativas de pequeno alcance que podem até captar votos nas freguesias e alimentar os anseios das estruturas regionais do partido, mas que têm pouco impacto na votação e nenhum na comunicação de massas além da mensagem de que o Bloco vai onde nenhum governante ou grande partido foi. Ou o penúltimo dia de campanha, em Aveiro, com o partido escondido das pessoas numa escola em Cacia e numa sessão de esclarecimento para estudantes na universidade.

Houve, igualmente, bons momentos, como o grande comício do Coliseu do Porto, com mais de mil e quinhentas pessoas, este já sob o mote “estamos prontos”, e os de Coimbra, Braga, Setúbal, Santarém e Faro, capazes de arregimentar muito boa assistência e onde o Fernando Rosas, o Luís Fazenda e o Miguel Portas brilharam. Como o momento em que, de forma taxativa e clara, fácil de perceber ao povo, Louçã disse um rotundo “não” a um entendimento com o PS, perante quinhentos militantes, sem os rodeios de uma semana de campanha passada a responder aos jornalistas que “o Bloco não alinha com políticas das quais discorda”, o que lá em casa ao jantar na televisão é o mesmo que nada. Como as intervenções do jovem candidato por Santarém, José Gusmão, sobre quem já escrevi, que vai revelar-se um óptimo parlamentar.

Os melhores momentos políticos da campanha foram, para mim, alguns discursos do Rosas e do Fazenda. Entusiásticos – até em demasia, como alguém haveria de me comentar – e ideológicos, bem claros: não abandonámos os ideais revolucionários, de mudança social, mas estamos abertos à transformação; isto não começou com as eleições nem vai acabar com elas, o trabalho do partido é a prazo, para organizar um novo campo social que sirva de base a um poder político de esquerda, socialista, alternativo, organizar as esquerdas da esquerda.

O líder do partido teve de se encarregar da mobilização das tropas, mais da forma que do conteúdo, e conseguiu-o. O estilo colheu, o discurso da justiça versus as injustiças que entram pelos olhos de todos também colheu, e as principais propostas apontaram directamente a franjas de eleitorado ávido de atenção ou desiludido com o Governo. A reforma por inteiro e sem penalizações após 40 anos de descontos; novos modelo de avaliação e estatuto da carreira docente; revogação do código do trabalho; um imposto sobre as grandes fortunas para financiar a segurança social e as pensões a convergir com o salário mínimo; ensino gratuito em todos os níveis. Isto é para os trabalhadores, para os professores e outras classes profissionais agastadas com o Executivo, para os jovens que estão a entrar na vida activa e para os estudantes, para os velhotes que vivem com pensões baixas. No essencial nem é preciso ir mais além e olhar para o casamento homossexual, ou para o fim das parcerias público-privado na saúde, ou para a reprivatização da parte da GALP vendida no final dos anos 90, ou para a tributação de todas as operações em bolsa, ou para um novo escalão de IRS de 45 por cento, ou para a saída de Portugal da NATO, ou para a proibição dos despedimentos nas empresas que apresentem lucros, entre outras. Já estou como o Louçã: leiam o programa, ele deixa poucas dúvidas. Eu também tenho poucas.

domingo, 20 de setembro de 2009

832 – 2436 quilómetros e o carro até já é outro – dias 4, 5, 6, 7 e 8
Arroz de carqueja é como se chama em Viseu ao arroz da cabidela que em vez de galinha tem vitela. No Cortiço é muita bom. Como os filetes de peixe-gato com migas de broa, couve, grelos e feijão frade, ou o pudim caseiro, caseiro mesmo. Já não me recordo em que dia foi, mas foi ao almoço. Não fomos foi ao bacalhau podre apodrecido na adega, com pena minha. Foi um bocado a correr. Como tem sido sempre, aliás. Até durmo a correr. Como no dia de Viseu, onde cheguei às cinco da manhã e acordei às oito com a redacção a ligar: “já viste os jornais?”

Estou tão cansado que não consigo escrever o que quero nem como quero. Quero, por isso, dizer apenas que:

1. O José Manuel Fernandes destruiu o que restava do Público; que o sillygate, os “disparates de Verão”, não era assim tão silly; que o senhor Cavaco que se queixava das “forças de bloqueio” andou a cozinhar uma e, até ver, deu cabo de uma recandidatura e ajudou a que Manuela Ferreira Leite tenha uma derrota retumbante nestas eleições; que ando a pensar em que raio de relação entre poderes é esta, com um Presidente a combater directamente nos jornais um Governo; que ando aqui numa encruzilhada deontológica devido à conduta do DN – não se divulgam as fontes do vizinho, diz-me a minha escola, mas o sacana do caso tem relevância política.

2. A campanha entre quem disputa o Governo está a passar-me ao lado. Não vejo telejornais, não ouço mais do que dois noticiários na rádio, não leio mais do que na diagonal as quatro páginas de campanha que dois diários publicam.

3. Por este lado a campanha anda morna, com o discurso repetitivo dirigido ao eleitorado-alvo bem identificado e assente na grande dicotomia “justiça vs os malandros”; com acções de campanha que, não obstante o ritmo endoidecedor, têm sido mal enjarocadas – isto não existe, mas toda a vida o ouvi – e que só espero melhorem quando se subir a norte definitivamente; anda com poucos reforços – o Miguel Portas lá apareceu hoje e o João Semedo lá foi dizer ontem ao Porto que querer maior justiça não é ser radical – e o Louçã já demonstra cansaço.

4. Ao menos agora consigo ouvir-me pensar quando vou a cento e quarenta na auto-estrada: dois mil quatrocentos e trinta e seis quilómetros depois; com Tires, Arrábida (de helicóptero), Moita, Setúbal, Serpa, Rio de Moinhos (Aljustrel), Almodôvar, Faro, Lisboa, Moscavide, Lisboa, Viseu, Porto, Alcobaça, Sintra e Moita com bandeirinha no mapa, agora ando em campanha com uma carrinha Citroen C5, um hino à insonorização.

5. Foi no Porto que tive o momento de loucura da campanha, que acontece a todos e geralmente bate certo com a metade da jornada, momento de insanidade, exaustão, explosão e regresso à normalidade depois de dormir, por uma vez que seja, durante sete horas.

6. Falta metade.

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Podem cancelar a campanha, Sócrates já os esmiuçou a todos
Tou a brincar, a campanha pode seguir. Mas que depois da entrevista ao Ricardo Araújo Pereira o Sócrates está lançadíssimo para uma vitória minoritária, isso está. Sócrates riu, Sócrates esteve sereno, Sócrates teve graça, Sócrates foi humano e falou da sua vida e de como nos bastidores da alta política um fulano como o Berlusconi lhe contou que em tempos foi alfaiate, confidência cuja partilha nos aproximou daquele homem que tem filhos, não levou gravata, e se sente — como é que ele disse? — privilegiado por chefiar os destinos do país. Está ganho! A não ser que a Manuela consiga rir como riu o Sócrates, as eleições estão no papo. Depois do debate com o Louçã, ganho em toda a linha, e depois das sucessivas trapalhadas da Ferreira Leite, sobretudo no seu discurso, que a senhora tem muita dificuldade em se exprimir e explicar, só faltam uns quantos malhanços a sério e à antiga nos comícios — venham de lá os Soares filhos, os ASS, os Vieiras da Silva, os Coelhos ou outros que tais — e a coisa está muito bem encaminhada. Caso contrário, se a Manuela se desfizer em gargalhadas, eu voto é no Ricardo para chefe do Governo.

373 – 508 quilómetros, Évora, Lisboa – dia 2
O arranque oficial de campanha teve promessas muito bem dirigidas. Na Sala Tejo do Pavilhão Atlântico, onde dias antes o PS havia dado um jantar bem orquestrado com o pessoal todo sentadinho nas mesas, o Bloco assegura que meteu mais de duas mil e quinhentas pessoas e que teve de recusar inscrições quando percebeu que não havia espaço para montar mesas para todos. Por isso metade ficou sentada e a outra metade teve de se contentar com o buffet volante. Ou então foi uma bela maneira de encher aquilo e criar a ilusão de óptica: a malta em pé e de bandeira colorida em punho é sempre mais malta que a malta sentada vestida de cores escuras tipo gala. Ana Drago, Luís Fazenda e Francisco Louçã não evitaram repetir que a sala fora grande para o PS e pequena para o Bloco. Adiante.

No Pavilhão Atlântico a mensagem foi muito clara: o Bloco quer crescer e para isso precisa dos socialistas descontentes com o Governo e dos indecisos com o voto em Sócrates. E porque nessa franja de eleitorado estão os professores, os jovens trabalhadores e os mais pobres, do palco atiraram-se compromissos para os primeiros dias da nova legislatura: ouvir.

Francisco Louçã repetiu a frase “estamos prontos”, que ainda não voltou a usar. Prontos para protagonizar o que pretendem que seja a maior subida dos votos à esquerda, de preferência no Bloco.

Já a frase da campanha, “justiça na economia”, serve para tudo. Malhar nos BPNs e na falta de transparência do sistema financeiro; criticar o offshore da Madeira que, dizem, custa 400eur/ano por contribuinte em receita fiscal perdida pelo Estado; clamar contra as injustiças dos prémios de gestão dos administradores de empresas que aumentam salários de trabalhadores a um ou zero por cento; e o que mais vier à rede. Tem sido todos os dias, os outros criam injustiças e eles querem repor a justiça. Se o Louçã ainda usasse o blusão de cabedal da primeira campanha era um verdadeiro Michael Knight — era Knight ou Night? Puta da memória…

508 – 832 quilómetros, Lisboa, Palmela/AutoEuropa, Santarém, Entroncamento – dia 3
O Bloco ainda vai voltar a Santarém. Já lá esteve duas vezes e a aposta é forte. Percebe-se. O Entroncamento foi onde conseguiram o melhor resultado há quatro anos, com 12,8 por cento dos votos, e onde nas Europeias subiram para 20, passando do partido menos votado no distrito para o terceiro lugar, com o dobro dos votos de então.

O cabeça de lista — e muito provável deputado — é um jovem quadro do partido, o economista José Gusmão, de 33 anos, irmão do bastante conhecido e antigo dirigente Daniel Oliveira. Escreve no blogue Ladrões de Bicicletas. Foi assessor de imprensa, tornou-se assessor político, é um dos homens fortes no aconselhamento de Louçã. O candidato já domina o discurso — pudera, é ele que o escreve — e a técnica, fala com o maior à vontade sobre desemprego e sobre injustiça social, e malha convicto e desembaraçado nas polémicas do dia-a-dia: Ferreira Leite, Jardim, o PS que elege o Bloco como inimigo número-um. Um promissor parlamentar, eu diria.

Quando puder meto aqui umas fotos e falo sobre roupa interior
Onde é que se janta no Entroncamento às oito e doze da noite? Na Golegã. Dito por um nativo: não é fenómeno, aqui não há mesmo nada. Lá fomos ao Café Central da que deve ser a única cidade portuguesa com uma rede de cavalovias, em vez de ciclovias, e onde o meio bife à central parecem dois. De vaca, frito, sem requintes de cervejaria cara, e não me refiro à apresentação, porque não tenho nada contra travessas de aço-inox, não adianta mesmo pedir mal passado porque vem sempre igual — éramos sete, sete vieram iguaizinhos. Fácil de cortar, suculenta, saborosa, a carne não se desfaz na boca como um lombo no Patanisca, em Torres Vedras — rua 9 de Abril n.º 27 fecha ao domingo 261000534 —, até porque a peça é cortada bem mais fina, mas é bem boa. Sem o molho de mostarda e manteiga também ia. Se aprenderem a substituir as batatas fritas e o arroz branco por esparregado — pois… — podem ter a certeza que ficam aí com um petisco e romarias para jantar, senhores. Pensem nisso. Como eu, que vou pensar em fazer um piqueno e médio roteiro gastronómico da campanha. Tenho é de jantar e almoçar. Coisa rara. É que estes dias têm servido para tentar aprender a conciliar ritmos de trabalho e viagem, mas sem grande sucesso, sou sincero. Nem para escrever sobra tempo e a Joana ainda se queixa que eu não twitto nem digo no Facebook por onde ando — o esforço de hoje para estas linhas foi titânico e amanhã afasto-me de vez de Lisboa e começam as longas tiradas, pelo que não esperem mais até lá para quarta ou quinta-feira. É que também estou a ganhar coragem para falar sobre um problema com umas cuecas que comprei.

domingo, 13 de setembro de 2009

0 – 373 quilómetros, Tancos, Abrantes, Évora – dia 1
Eu até escrevia um título mas estou demasiado irritado com o portátil PC com que tenho de trabalhar, e que duvido chegue inteiro ao final da campanha – usem um Mac uma vez na vida, só vos peço isso…
Sócrates vai dizendo que não se candidata contra ninguém e que quer é resolver os problemas do país. Ferreira Leite diz-lhe cara-a-cara que as diferenças que os separam são insanáveis e que não há hipótese de entendimento. Louçã começa a fazer contas à vida, consciente do peso que o Bloco de Esquerda terá num futuro arranjo governativo que – sabemos desde há pouco – não passará por um bloco central, e quando as sondagens dão a vitória ao PS, a maioria dos votos aos partidos da esquerda e o BE como terceira força política.

Cauteloso, como as circunstâncias assim obrigam, esta noite, em Évora, Francisco Louçã lá foi dizendo que um Bloco mais forte, sendo fiel à esquerda, vai ajudar a todas as decisões e que isso é que é governabilidade. “O Bloco de Esquerda é governabilidade, é seriedade e é responsabilidade” mas, lá está, sempre sem defraudar as expectativas do seu eleitorado. Admite viabilizar propostas no Parlamento, com acordos pontuais com o partido que ganhar as eleições e for convidado a formar Governo – que Louçã crê que será o PS, embora não o diga – mas com uma condição: as medidas têm de ir ao encontro do que são as políticas do Bloco. Suficientemente ziguezagueante? Lá está.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Bom bom acaba por ser a fotografia que a RTP pôs online (Elvis ou Louçã?)
A expectativa era grande. O Bloco de Esquerda procura capitalizar o descontentamento de algum eleitorado do PS e os socialistas precisam sacudir essa ameaça bloquista e convencer esses eleitores de que o Bloco é um perigoso feudo de radicais idealistas e irrealistas. No debate desta noite José Sócrates recuperou algu
ns votos mais mecânicos e Francisco Louçã saiu de estúdio menos capaz de agarrar socialistas à beira do abismo.

podem ver o debate aqui

Agitando algumas das principais propostas do BE, como a nacionalização da banca ou do sector energético, o fim dos benefícios fiscais dos PPR, ou o fim das deduções, em IRS, das despesas com educação e saúde, Sócrates conseguiu demonstrar o radicalismo dos bloquistas e pôr a claro as diferenças ideológicas entre os dois partidos, ou o carácter ideológico mais vincado do BE, se preferirem. Porque a partir do momento em que Louçã explica que propõe o fim dessas deduções fiscais porque defende, a montante, sistemas de saúde e ensino gratuitos, pelo que não há, então, como deduzir despesas, as coisas ficam claras. E capazes de assustar suficientemente um eleitor do PS descontente com este Governo para que lhe passe a indecisão e não deixe de votar nos socialistas. A estratégia vingou, Sócrates saiu acudindo à classe média que o BE quer alvejar.


Louçã não resistiu a enveredar pelo caminho mais fácil, e mediático, de apontar baterias aos ricos e aos negócios, tudo requentado e demasiado ouvido, algo demagógico, que até pode ser verdade mas para a qual já não há paciência: levou ao debate os contentores de Alcântara, falou de mais uma auto-estrada, recordou a compra de parte da GALP por parte de Américo Amorim e José Eduardo dos Santos, e com isso não vendeu sequer o seu peixe. Nem obrigou Sócrates a explicar, de uma vez por todas, a quem vai beneficiar a política de grandes investimentos públicos, por exemplo.

Sócrates nunca foi obrigado a comprometer-se com o que quer que fosse e Louçã viu-se encostado à parede com as propostas que definem um pouco da sua base ideológica, que sem a máscara do protesto podem não agradar a alguns descontentes e indecisos. Valeu por esta discussão que, não sendo programática, é, para mim, definidora: as ideias. Mesmo assim eEsperava maior debate em torno de argumentos para caçar votos ou minimizar fugas de eleitorado, que não houve. Faltam 19 dias, está tudo em aberto.


:::: Nota de intenções ::::
Até às eleições legislativas tentarei partilhar diariamente uma breve nota de campanha. Poderá incidir na forma ou no conteúdo. Será sobre o que calhar e consoante o que acompanhar. Uma apreciação pessoal e descomprometida, para os amigos. Até para que saibam por onde ando e porque não me verão em Setembro. A única coisa por que milito é o voto, num, noutro, em todos ou em branco. A determinada altura terei de me cingir ao partido que vou acompanhar, por isso não estranhem que fale sempre do mesmo. E por agora é só isto.

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Não é giro e não é campanha: é um atestado de incapacidade ao candidato
Sei que a técnica é antiga, mas não é por isso que deixa de ser idiota. No parlamento chamam-lhe vozearia, mas como todos vestem fato e a câmara faz eco, tem outra solenidade. Na rua, em campanha eleitoral, é só palermice.

A pergunta do repórter pode nem ser incómoda, mas também pode; até pode nem ser idiota, mas também pode; como pode apenas ter sido mal percebida, mal formulada, mal recebida, mal colocada, ou até e simplesmente mal ouvida, qualquer coisa serve. É que perante a hesitação do candidato na resposta a uma pergunta feita numa acção de rua, a jota partidária começar por trás a gritar “PAR-TI-DO! PAR-TI-DO! PAR-TI-DO!” para dar margem de fuga ao interrogado, é pouco sério. Além de que, acima de tudo, é um atestado de incapacidade que os apoiantes passam ao seu candidato.


OUVIR

E sabendo que alguns dos jotas até andaram a frequentar uma acção de formação de jovens quadros políticos, a única do país, até é triste. Como é infeliz que alguns assessores riam de contentamento pelo boicote. Espontâneo, dirão. E eu acredito — não dá mesmo para mais, não é? Depois todos lamentam o baixo nível dos políticos e da política.



:::: Nota de intenções ::::

A partir de hoje e até às eleições legislativas tentarei partilhar diariamente uma breve nota de campanha. Poderá incidir na forma ou no conteúdo. Será sobre o que calhar e consoante o que acompanhar. Uma apreciação pessoal e descomprometida, para os amigos. Até para que saibam por onde ando e porque não me verão em Setembro. A única coisa por que milito é o voto, num, noutro, em todos ou em branco. A determinada altura terei de me cingir ao partido que vou acompanhar, por isso não estranhem que fale sempre do mesmo. E por agora é só isto.

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Agora que penso nisso, passei uma semana sem beber leite
Diz que foi o Dom Dinis que mandou construir o castelo de Marvão. Percebe-se. O rei lavrador nasceu num planalto, em Santarém, e sabendo do alto de um morro em granito a mais de oitocentos metros acima do nível do mar não hesitou em ali erguer a fortaleza. Ou então foi para travar a mania que os de Castela tinham de vir para este lado da fronteira, como se isto fosse deles. É que Marvão está a meia dúzia de quilómetros de Espanha e dava um excelente posto de vigia, até perder de vista. De resto, ali próximo passava a estrada romana que ligava Cáceres a Santarém, e no sopé do monte passa o rio Sever e para o atravessar tinha de se pagar. A Portagem é hoje a aldeia onde se compra o jornal, porque em Marvão não há tabacaria. Nem pastelaria. Nem mais de cento e cinquenta pessoas. Mas é a vila mais alta do reino de Portugal e é a sede do concelho. Concelho? Dom Dinis não teria imaginado isso, nem que a albergaria na praça central da vila fosse chamar-se El Rei Dom Manuel, o bem-aventurado. Uma facadinha nas costas, portanto. É por estas e por outras que simpatizo com a ideia de uma reforma administrativa do território, que nada tem que ver com a semana que passei em Castelo de Vide. Acho que há presidentes de junta a mais. É só isso. Porque das gentes de Marvão não tenho a menor queixa. Ora veja-se.

Assim que perguntei por uma lavandaria onde deixar algumas camisas a engomar a dona da albergaria disse logo deixe estar que eu trato disso. E à noite lá estavam as quatro peças direitinhas e impecavelmente penduradas em cabides no roupeiro do meu quarto. A única coisa de que me esqueci foi que os alentejanos não dão ponto sem nó e por isso fui apanhado de surpresa ao segundo dia, de manhã, quando ia a sair: olhe que o homem gostava de falar consigo, disse-me o marido da dona da albergaria. O presidente da câmara passou por aqui, viu o carro da rádio estacionado e pensou logo que você podia dar uma ajuda. Em quê? É que vamos ter aqui a primeira feira do café, e há tradição nisto, porque estamos próximos da fronteira, contrabandeava-se café, e depois também houve aqui duas torrefacções, é tradição, acredite João Pedro. Eu acredito, eu acredito, mas não posso prometer, sabe que essas coisas não são comigo, e o homem já me tratava por João Pedro. É que a gente precisa de divulgar isto. Pois, pois. Mas vá lá falar com ele, o presidente tem um restaurante lá em Castelo de Vide, se calhar você ia lá almoçar com ele e coiso. Pois, pois, eu estou ali em trabalho, o tempo não é muito, mas logo se vê o que se arranja. Pense lá nisso. Vou pensar, vou pensar.

Ao sexto dia já via tudo laranja. O pôr do sol era bonito porque era laranja. Ao pequeno-almoço bebia sumo de laranja. À sobremesa do jantar perguntava se havia torta de laranja e acabava por comer encharcada de amêndoa só porque era cor de laranja. As moças — as que tinham mais de vinte aninhos — ficavam bem de laranja. Só já não podia é com os laranjinhas. Por isso é que resolvi apagar um parágrafo enorme que escrevi sobre os seis dias que passei com eles. Não sobrou nem uma vírgula. Como me parece não ter sobrado um minuto de jeito. Não sei que raio aconteceu, mas o tempo passou depressa demais. Nas horas livres fui a Portalegre, mas não sei o que fiz, fui a Nisa, mas consegui comer na pior taberna da vila, fui às ruínas da cidade romana de Ammaia e deparei-me com um triste espectáculo de abandono e falta de zelo, apesar dos dois euros que pagamos à entrada, vi Castelo de Vide e vi Marvão mas foi como em Portalegre, não sei o que fiz. Já nem sei onde guardei a factura do restaurante Sever, que já se está a ver onde fica, de que agora precisava para escrever sobre o almoço que daria o título a este texto. Caraças. É que não me recordo do que comemos. Javali à casa, parecido à carne de porco frita à portuguesa, mas mais rijo — o javali é um bicho duro, tem aqueles dentes salientes. Dentes salientes não funciona lá muito bem. Mas fica assim. Arroz de lebre, com um pedacinho a mais de sangue e a menos de limão, mas bem guarnecido de carne, suculenta, saborosa, e o arroz malandrino. Veado com castanhas, que na verdade é gamo, o melhor prato de todos. Cortada às fatias, a carne é um pouco gorda, mas o sabor é intenso. As castanhas congeladas e sem gosto deviam obrigar a adiar aquilo tudo para o Outono. Todos ganhavam. Ainda deixei a sugestão ao moço que nos serviu, que me retribuiu com a melhor sobremesa da casa. O tecolameco serve-se à fatia. A base é de amêndoa, o resto é ovo e açúcar e é divinal, porque no final de contas nem é muito doce. A sério! Mas, pronto, reconheço que à distância de dias e sem os meus apontamentos não consigo melhor. Costumo rabiscar umas notas de prova nas costas do papelito e sem factura agora nem me vão pagar a refeição. Estou duplamente lixado. Um bocado como fiquei com Óbidos.

Terminada a missão alentejana, tarde e a más horas, achei por bem oferecer-me um jantar de faca e garfo na outra ponta do país. Ou quase, vá. Então, depois de dormir uma semana dentro de muralhas, e de passar os dias numa terra de castelo, rumei a Óbidos, que também está circunscrita às paredes da fortaleza. Só que em Óbidos não se janta. Só se ginja. Em todo o lado, que também não é muito lado, porque aquilo é mais pequeno que Marvão, há uma banca ou uma casa que vende ginja, em copo de plástico, de barro ou de chocolate. Se for de plástico custa um euro, se for de barro custa mais cinquenta cêntimos e pode trazer-se a canequinha pintada de azul e branco, se for de chocolate custa o mesmo euro e pode comer-se. Que era precisamente o que eu queria. Depois de dar uma volta inteira à vila decidi ir ao posto de turismo. Sabe, nós não podemos recomendar, mas temos aqui um mapa com os restaurantes. Que são catorze e a grande maioria fecha ao domingo. Que é uma atitude que eu subscrevo e aconselho. Em Óbidos, onde ao fim-de-semana chegam autocarros cheios de velhotes ou de crianças, e carrinhas com famílias de quatro, mais espanhóis que portugueses, mas também por lá ouvi franceses, italianos, e uma francesa em particular, mas já lá vamos, em Óbidos, dizia eu, o melhor que o proprietário de um restaurante tem a fazer em pleno Agosto é fechar as portas ao domingo. Descanso semanal do pessoal. Abra à segunda, senhor empresário. Mas feche ao domingo. Ao domingo, afinal, aquilo só está cheio, mas não se passa nada. Como na sua cabecinha: não se passa mesmo nada.

Acabei no Conquistador. Porque, no fundo, esta semana foi dedicada aos homens com uma missão. Da mesma maneira que o Dom Dinis ordenou a construção do castelo de Marvão, da mesma maneira que a Manuela está a “lutar” — precisamente, com aspas — para chegar a chefe de governo, da mesma maneira que os jotinhas foram aprender a ser jotinhas e cenário de mini-tele-comícios ao jantar, o fulano que está à frente do Conquistador, o Afonso, têm uma missão: fazer com que não se volte lá. É caro — mas isso, em abono da verdade, são todos, para turista ver — e banal. Azeitonas acabadas de sair do frigorífico e com sal grosso ao molho? Chouriço tipo corrente assado? Uma posta baixa de bacalhau no forno? Batata a murro por esmurrar? O que safou a Louise e a amiga foi eu estar ali em missão. As francesas são sempre assim: andam aos pares e há a Louise e a amiga, que é a simpática. Esta tudo dito. Lá lhes pedi as sardinhas, as batatinhas, a salada de tomate com cebola e orégãos e um vinho verde fresco. A Louise tinha o cabelo castanho claro acima dos ombros, a pele branca com umas poucas sardas, o nariz fino e arrebitado, os olhos verdes, as mãos delicadas e as unhas sem verniz, que isto de andar de mochila às costas não perdoa, digo eu, e vestia um vestido verde, curto, acima do joelho, pois claro, mais de trinta e cinco graus à sombra, e estava a descer desde o Porto, aos pedaços, para fazer render as semanas. Ainda disse ao fulano, trate bem as moças!, mas aquele sorriso que me atirou não augurou nada de bom.

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Com esparregado?
Quando era puto eu não gostava de esparregado. Julgava eu. Quando era puto eu não sabia nada de comidinha. Hoje sei pouco, mas sei o suficiente para não dispensar esparregado. E por mim comia esparregado com tudo. Como as coisas mudam. Tenho quase mais dez quilos do que tinha há quatro anos. Mas isso não tem nada que ver com as minhas caminhadas de uma hora e picos até casa. Faço-o porque a cidade é bonita, porque ando a passar no Palladium todos os dias à procura da Monocle, que este mês traz um artigo sobre Lisboa, porque as noites estão amenas, e porque ando a ver quando é que me apaixono por uma turista linda e de pernas longas, daquelas que vejo no caminho de vez em quando, a descer a avenida do Tivoli ou do Sofitel. É que faz agora duas semanas que vi uma estrela cair e pedi um desejo, logo, nem demorei mais de trinta segundos a pensar, tem de ser logo de seguida, e eu pedi.


Para fazer esparregado começa por se ferver os espinafres, que é diferente de cozê-los, depois de os comprar no mercado ao sábado de manhã. Não confio nos espinafres do Pingo Doce ou do Continente, e do A. C. Santos simplesmente não confio em nada que não esteja embalado — sou um gajo desconfiado. Deita-se os espinafres fervidos e bem escorridos num refogado de azeite e alho, que é estrugido acima de Leiria, o alho cortado fininho e apenas alourado, que há poucas coisas piores do que o sabor de alho queimado. O cheiro a alho nas mãos suporta-se. Mexe-se os espinafres e junta-se farinha e leite a olho, sempre mexendo, até ganhar a consistência pretendida, e não esquecendo o sal e a pimenta, com parcimónia, que esparregado salgado não tem piada e doce demais também não. Se vos disserem que na vez do leite pode juntar-se natas, soltem uma gargalhada forte e depois metam uma cara séria e um olhar impiedoso. Se vos disserem que é costume deitar-se umas gotinhas de limão, levantem só o sobrolho — é uma questão de paladar.


No H3 pode comer-se hambúrguer no prato com esparregado, em vez do arroz ou das batatas fritas que são às rodelas e cheias de gordura, para mostrar que não vêm do pacote. O H3 é aquele restaurante de hambúrguer gourmet, no que tem de restaurante uma casa que está nos centros comerciais de norte a sul do país, e que se apregoa not so fast food. O hambúrguer é alto, da grossura de um dedo e meio, dos meus, e diz que são duzentas gramas de carne de novilho, que vai à chapa no ponto que o cliente desejar. Para mim é médio, e foi mesmo médio, em cheio, o exterior durinho sem estorricar, o interior cor de rosa sem sangrar. Pela consistência do hambúrguer, que não se desfez ao cortar, por oposição àqueles que fazemos em casa com carne picada ou que compramos feitos, frescos, no supermercado, que ao primeiro encosto da faca já se vão esboroando, pela consistência o hambúrguer é decerto processado industrialmente — ok, não há milagres —, mas não se pense que isto é mau. E esta frase foi alterada, porque eu tinha escrito certamente processado industrialmente, mas depois achei que ficava mal.


O hambúrguer vem com duas fatias de queijo amarelo por cima, um borrão de ketchup e outro de maionese com sementes de mostarda, ao lado, e um tufo de cebola frita com qualquer coisa, que aquele docinho não é genuíno. Este é o sexto da lista, o H3 Cheese. Os outros são todos afogados em molhos de cogumelos, à portuguesa ou holandês. O esparregado pareceu-me congelado, algo líquido, mas, como dizem os próprios, é feito de espinafres. A limonada, demasiado doce, deixou-me na dúvida — espremida ou da garrafa? Para esclarecer na Rua Nova do Almada, no casinhoto abaixo do Tribunal da Boa Hora — não se deixem intimidar pelas sandes de panado, ali há mesmo li-mo-na-das. Para rematar, nada de sobremesas, porque se é para dar cabo de tudo procura-se uma Portugália e come-se uma taça de doce de ovos a sério e à séria, mesmo no Verão, ao balcão. Custa seis euros, é saboroso, tem um gosto natural. Para os fãs, também há no pão.

domingo, 9 de agosto de 2009

Olá, acho que nunca falei contigo mas posso pisar-te à vontade?
Acordei com azia e com o barulho dos camiões às cinco e meia da madrugada, umas duas horas depois de nos termos deitado, depois de mais um belo improviso do João no órgão chinês. Na pousada de juventude de Ponte de Lima, estar no quarto ou acampado à beira da estrada nacional é a mesma coisa, no que toca ao ruído. Que bela obra de uma qualquer cabeça pensante que há seis anos não arranjou melhor terreno do que aquele, com vista para a estrada, os carros, as motoretas, os camiões, vrrrruuuummm... vrrrruuuummm. Impossível dormir, mesmo com um copo de vinho verde a mais. Tentei música, tentei rádio, tentei contar camiões, tentei a cabeça debaixo da almofada, tentei refrescar-me na casa de banho e tentei começar de novo. Foram horas. Acabei por convencer o João, o outro, a descer comigo para o pequeno almoço, antes das oito, para, pela primeira vez em muitos anos, beber leite com Nesquik. É que, lá em casa, depois das fases Cola Cao e Ovomaltine regressou-se ao Suchard Express para não mais o deixar. E é o que compro hoje. Mas a lata amarela de tampa azul com o amigável coelhinho, que hoje é um coelhinho todo urbano que veste calças largas e usa boné com a pala para trás, mantém os seus encantos: é muita doce. Eu fui membro do clube Nesquik mas no meu tempo não havia rios de leite chocolatado a correr por prados verdejantes, como há agora. Bebi duas canecas.


Sem mais para fazer ou ver, que Ponte de Lima é pequena e a água do rio é desaconselhada para banhos, depois de todos acordarem, depois de dois jornais lidos, cafés tomados em duas esplanadas, caminhada pela vila e um mergulho solitário dezasseis quilómetros mais acima, em Ponte da Barca, a meio da tarde rumámos a São Pedro do Sul, para a aldeia de Carvalhais. Havia quem tivesse encontro marcado no Andanças, festival internacional de danças populares, há catorze anos a mudar a vida aos pédexumbo. Como eu. No fundo tudo se resume a encontrar um bom professor. Um par que saiba conduzir e tenha paciência para ensinar, e coragem para aguentar umas caneladas e pisadelas. Acho que o festival tem, aliás, esse único objectivo, o de proporcionar encontros entre instrutores informais e instruendos empenhados em deixar-se instruir nos movimentos ritmados de coordenação entre o corpo, as pernas, e os pés — o meu pé direito não me obedece. Depois também tem aquela coisa das aulas e dos ateliês, de manhã, das sessões de djambé ao despique, à tarde na relva da escola primária, dos concertos e espectáculos, de noite, mas duvido que esses sejam os principais atractivos. Por fim, tem cerveja e uma espécie de hidromel. Uma espécie porque o que ali se vende já nada tem que ver com essa antiga bebida fermentada a partir de mel e água, com muito mais partes desta do que daquele, um néctar de cor amarela que tinha um teor alcoólico a rondar os quinze graus. Não. Ali há aguardente, ou bagaço, ou o que o valha, e de mel há um leve aroma. Resultado: bate forte e um dia depois o João, um deles, e recordo que somos três, não conseguirá sequer comer uma torrada. Fraquinho, portanto. O hidromel.


No Andanças até eu dancei. Arranjei uma professora do caraças, bailarina de grande experiência e demorada formação que, vendo-nos abandonados pelos compinchas, e depois de mais um copo, me levou pela mão para o meio da pista e estoicamente me explicou o que fazer, como fazer, e ainda louvou os meus progressos. Assim vale a pena voltar para o ano, mas desta vez que sejam uns três dias, que isto soube a pouco. A minha professora tem a pele branquinha, sardas, olhos claros, esverdeados?, apareceu de unhas vermelhas, calções escuros e chinelo no pé e, como todos os que por lá andavam, de canequinha de alumínio à cintura. Por acaso, quando se baila agarradito a caneca não ajuda. Mas a minha professora fez ballet durante quase vinte anos e irrita-se quando não consegue apanhar o passo daquelas danças assim mais mexidas. Ela chega, fica a observar uns minutos, vai batendo o pé e estudando os movimentos, até que arranca e já ninguém a pára. Profissionalíssima. Há mais de vinte anos que sabia dela, morámos na mesma rua, mas acho que nunca lhe tinha dito mais do que olá. Eu jogava à bola, ela aparecia pouco. Podem pedir o número para umas aulas, que eu não vos dou.

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Sabes onde é que há bons limonetes?
Imbuído do espírito conquistador, eu tinha uma missão: comer os limonetes da Confeitaria Moura em Santo Tirso, que mesmo não tendo provado dos concorrentes posso afiançar que são os melhores. Trata-se de um pastel que tem uma carapaça de massa que parece de suspiro ou daquela dos jesuítas. No topo, um fiozinho em cruz. O recheio parece, à primeira vista, de um pastel de feijão e por isso tem de se comer dois. Não é doce, é suave, não é cremoso, é pastoso, e não consegui que me dessem a receita ou e
xplicassem a origem do bolinho que tem nome de erva para chá. O mais que consegui arrancar da senhora que lá estava, pouco conversadora para quem lhe confessou ter feito quilómetros só para ir ali provar a iguaria aconselhada por uma moça da terra, foi que a casa é mais do que centenária, com uns cento e dezassete anos. Não tem nada que enganar: fica no centro, ao pé da Caixa Geral de Depósitos. O teu mapa é que não ajudou muito porque acho que me enganei a lê-lo.

Foi em Santo Tirso que o João comprou o órgão que irá animar o resto da viagem. Custou cinco euros numa loja chinesa, tem microfone, efeitos, volume com duas posições hi e lo que não fazem a menor diferença, funciona a quatro pilhas e tem entrada para um alimentador que não traz. O Miles XH322A compra-se em lotes de trinta e seis a setenta e três dólares e oitenta cêntimos, o que dá dois dólares e cinco cêntimos por unidade, que vendidas na loja a cinco euros dá uma margem de três euros e cinquenta e cinco cêntimos por cada órgão, câmbio actual e a preços do ebuychina.com, o que traduzido para português e despachando a mercadoria num contentor cheio de outras coisas para justificar os custos de envio é um granda negócio. A dois dólares por cada brinquedo, nem quero imaginar quanto ganha o operário chinês. Import-export é que está a dar e nós gastamos dinheiro naquelas tralhas que depois duram um mês, se tanto. Mas a musiquinha que dali sai é uma granda pinta e até Ponte de Lima viajámos ao som dos improvisos do João e do David. Acho que há uma filmagem disso. O David, aliás, filmou os primeiros dias da aventura e ficou de montar um pequeno vídeo sobre a odisseia. Pena que a partir do vinho verde não mais se tenha filmado. Coisas que acontecem.

O José João chegou pedindo um cigarro e acabou fumando meio maço, sentado na nossa mesa, com a mulher, espanhola, bebendo bagaço e mostrando duzentas e oitenta e uma fotografias da viagem que estão fazendo desde Dezembro, a pé. Começou por ser o caminho de Santiago, desde Tarragona até Compostela, agora é uma caminhada até Fátima que terminará lá para o final do mês em Corroios, onde o José João vai visitar o seu velhote, que está num lar. Caminhar foi a forma que o José João e a mulher encontraram para não vagabundear por Tarragona depois de perderem os empregos e a casa onde viviam. É a crise, diz ele, afagando o bigode, meio em português, meio em castelhano, que este carpinteiro metálico já leva vinte anos de Espanha e está zangado com o Zapatero, que “fodeu isto tudo, pá, crê no que te digo”. Não sabe se regressará. Agora vive um dia de cada vez, sem pressa de chegar, sem pressa de sair, porque quem tem pressa não termina a viagem, acampando pelo caminho, um albergue de peregrinos aqui, outro acolá, pernoitar num quartel de bombeiros, com companheiros que encontram pela estrada, comendo o que lhes oferecem, comprando um chouriço no minimercado com dinheiro que lhes dão os amigos que fazem na jornada, seguindo em frente com a determinação de não parar. Cigarros é que não, é um vício caro e pelo caminho há sempre quem dispense um. Depois de fazeres um caminho de Santiago só queres fazer outro, diz, com a voz rouca, a pele queimada do sol, as pernas magras dos cinco mil quilómetros que diz ter percorrido.


No pequeno café do outro lado da ponte medieval e romana de Ponte de Lima conhecemos também o Melo e a Beatriz, pai e filha de cinco anos, que estavam na mesa do lado e com quem acabaríamos por jantar, por sugestão dele, num tal de Katequero, entre brincadeiras com a miúda, que a mãe não teve férias este ano. Serviu-nos a Céline, pele branca, cabelo castanho apanhado, olhos claros e sorriso envergonhado com as nossas palhaçadas para a Beatriz e o charme palerma para ela, que está de férias a trabalhar para juntar uns dinheiros, que terminou agora o décimo segundo ano e quer ser veterinária, só não sabe onde. O bacalhau à minhota é o melhor prato da casa e meia dose chega para dois.


Ainda esperámos por ela no Rampinha, mas nada. Só o Luís, atrás do balcão, de barba e cabelo brancos, mal disposto e facilmente irritável, mas que acabou a noite a escrever-me nas costas do cartão de visita do bar “do amigo Luís Tavares”. Por momentos ainda pensei que escrevesse “do camarada”, mas enganei-me. O Luís é comunista e o Rampinha também. Por todo o lado, mas por todo o lado mesmo, há fotografias, caricaturas, recortes e textos de e sobre Che Guevara. O suporte para os pés nos bancos do balcão são a cara do Che, a daquele retrato famoso, recortada numa chapa de aço. Nas paredes amarelecidas estão pintados a preto dois retratos do comandante e um do Zeca Afonso. Aqueles vão morrer ali, no dia em que fechar o Rampinha, que há vinte e dois anos conserva a mesma imagem, ao início da Rua Formosa, que é uma rampa. Lá está.